Infância perdida
(para o Miau)
Nesse tempo, Edelfride,
Com quatro macutas
A gente comprava
Dois pacotes de ginguba
Na loja do Guimarães.
Nesse tempo, Edelfride,
com meio angolar
a gente comprava
cinco mangas madurinhas
no Mercado de Benguela.
Nesse tempo, Edelfride,
montados em bicicletas
a gente fugia da cidade
e ia prás pescarias
ver as traineiras chegar
ou então
à horta do Lima Gordo
no Cavaco
comer amoras fresquinhas.
Nesse tempo, Miau,
(alcunha que mantiveste no futebol)
nós fazíamos gazeta
da escola coribeca
e íamos os quatro
jogar sueca
debaixo da mandioqueira.
Era no tempo
em que o Saraiva Cambuta batia na mulher
e a gente gostava de ver a negra levar porrada.
Era no tempo
dos dongos da ponte
dos barcos de bimba
dos carrinhos de papelão
Como tudo era bonito nesse tempo, Miau!
Era no tempo do visgo
que a gente punha na figueira brava
para apanhar bicos-de-lacre e seripipis
os passarinhos que bicavam as papaias do Ferreira Pires
que tinha aquele quintalão grande e gostava dos meninos.
Era no tempo dos doces de ginguba com açúcar.
Mais tarde
vieram os passeios noturnos
à Massangarala
e ao Bairro Benfica.
E o Bairro Benfica ao luar
O poeta Aires a cantar
(meu amor da rua onze e seu colar de missangas...)
Tudo era bonito nesse tempo
até o Salão Azul dos Cubanos
e o Lanterna Vermelha - o dancing do Quioche.
Foi então que a vida me levou para longe de ti:
parti para estudar na Europa
mas nunca mais lhe esqueci, Edelfride,
meu companheiro mulato dos bancos de escola
porque tu me ensinaste a fazer bola de meia
cheia de chipipa da mafumeira.
Tu me ensinaste a compreender e a amar
os negros velhos do bairro Benfica
e as negras prostitutas da Massangarala
(lembras-te da Esperança? Oh, como era bonita
[essa mulata...)
Tu me ensinaste onde havia a melhor quissângua
de Benguela:
era no Bairro por detrás do Caminho de Ferro
quando a gente vai na Escola da Liga.
Tu me ensinaste tudo quanto relembro agora
Infância Perdida
sonhos dos tempos de menino.
Tudo isso te devo
companheiro dos bancos de escola
isso
e o aprender a subir
aos tamarineiros
a caçar bituítes com fisga
aprender a cantar num kombaritòkué
o varre das cinzas
do velho Camalundo.
Tudo isso perpassa
me enche de sofrimento.
Diz a tua Mãe
que o menino branco
um dia há-de voltar
cheio de pobreza e de saudade
cheio de sofrimento
quase destruído pela Europa.
Ele há-de voltar
para se sentar à tua mesa
e voltar a comer contigo e com teus irmãos
e meus irmãos
aquela moambada de domingo
com quiabos e gengibre
aquela moambada que nunca mais esqueci
nos longos domingos tristes e invernais da Europa
ou então
aquele calulu
de dona Ema.
Diz a tua Mãe, Edelfride,
que ela ainda me há-de beijar como fazia
quando eu era menino
branco
bem tratado
quando fugia da casa de meus Pais
para ir repartir a minha riqueza
com a vossa pobreza.
Diz tudo isso a toda a gente
que ainda se lembra de mim.
Diz-lhes. Diz-lhes
grita-lhes
aos ouvidos
ao vento que passa
e sopra nas casuarinas da Praia Morena.
Diz aos mulatos e brancos e negros
que foram nossos companheiros de escola
que te escrevo este poema
chorando de saudade
as veias latejando
o coração batendo
de Esperança, de Esperança
porque ela
a Esperança
(como dizia aquele nosso poeta
que anda perdido nos longes da Europa)
está na Esperança, Amigo.
Edelfride, você não chore
saudades do Castimbala
nem lhe escreva
cartas como essa
que são de partir
meu pobre coração.
Nesse tempo, Edelfride,
Infância Perdida
era no tempo dos tamarineiros em flor...
Ernesto Lara Filho
(O Canto de Martrindinde e Outros Poemas Feitos no Puto)
1964, Lisboa
Nesse tempo, Edelfride,
Com quatro macutas
A gente comprava
Dois pacotes de ginguba
Na loja do Guimarães.
Nesse tempo, Edelfride,
com meio angolar
a gente comprava
cinco mangas madurinhas
no Mercado de Benguela.
Nesse tempo, Edelfride,
montados em bicicletas
a gente fugia da cidade
e ia prás pescarias
ver as traineiras chegar
ou então
à horta do Lima Gordo
no Cavaco
comer amoras fresquinhas.
Nesse tempo, Miau,
(alcunha que mantiveste no futebol)
nós fazíamos gazeta
da escola coribeca
e íamos os quatro
jogar sueca
debaixo da mandioqueira.
Era no tempo
em que o Saraiva Cambuta batia na mulher
e a gente gostava de ver a negra levar porrada.
Era no tempo
dos dongos da ponte
dos barcos de bimba
dos carrinhos de papelão
Como tudo era bonito nesse tempo, Miau!
Era no tempo do visgo
que a gente punha na figueira brava
para apanhar bicos-de-lacre e seripipis
os passarinhos que bicavam as papaias do Ferreira Pires
que tinha aquele quintalão grande e gostava dos meninos.
Era no tempo dos doces de ginguba com açúcar.
Mais tarde
vieram os passeios noturnos
à Massangarala
e ao Bairro Benfica.
E o Bairro Benfica ao luar
O poeta Aires a cantar
(meu amor da rua onze e seu colar de missangas...)
Tudo era bonito nesse tempo
até o Salão Azul dos Cubanos
e o Lanterna Vermelha - o dancing do Quioche.
Foi então que a vida me levou para longe de ti:
parti para estudar na Europa
mas nunca mais lhe esqueci, Edelfride,
meu companheiro mulato dos bancos de escola
porque tu me ensinaste a fazer bola de meia
cheia de chipipa da mafumeira.
Tu me ensinaste a compreender e a amar
os negros velhos do bairro Benfica
e as negras prostitutas da Massangarala
(lembras-te da Esperança? Oh, como era bonita
[essa mulata...)
Tu me ensinaste onde havia a melhor quissângua
de Benguela:
era no Bairro por detrás do Caminho de Ferro
quando a gente vai na Escola da Liga.
Tu me ensinaste tudo quanto relembro agora
Infância Perdida
sonhos dos tempos de menino.
Tudo isso te devo
companheiro dos bancos de escola
isso
e o aprender a subir
aos tamarineiros
a caçar bituítes com fisga
aprender a cantar num kombaritòkué
o varre das cinzas
do velho Camalundo.
Tudo isso perpassa
me enche de sofrimento.
Diz a tua Mãe
que o menino branco
um dia há-de voltar
cheio de pobreza e de saudade
cheio de sofrimento
quase destruído pela Europa.
Ele há-de voltar
para se sentar à tua mesa
e voltar a comer contigo e com teus irmãos
e meus irmãos
aquela moambada de domingo
com quiabos e gengibre
aquela moambada que nunca mais esqueci
nos longos domingos tristes e invernais da Europa
ou então
aquele calulu
de dona Ema.
Diz a tua Mãe, Edelfride,
que ela ainda me há-de beijar como fazia
quando eu era menino
branco
bem tratado
quando fugia da casa de meus Pais
para ir repartir a minha riqueza
com a vossa pobreza.
Diz tudo isso a toda a gente
que ainda se lembra de mim.
Diz-lhes. Diz-lhes
grita-lhes
aos ouvidos
ao vento que passa
e sopra nas casuarinas da Praia Morena.
Diz aos mulatos e brancos e negros
que foram nossos companheiros de escola
que te escrevo este poema
chorando de saudade
as veias latejando
o coração batendo
de Esperança, de Esperança
porque ela
a Esperança
(como dizia aquele nosso poeta
que anda perdido nos longes da Europa)
está na Esperança, Amigo.
Edelfride, você não chore
saudades do Castimbala
nem lhe escreva
cartas como essa
que são de partir
meu pobre coração.
Nesse tempo, Edelfride,
Infância Perdida
era no tempo dos tamarineiros em flor...
Ernesto Lara Filho
(O Canto de Martrindinde e Outros Poemas Feitos no Puto)
1964, Lisboa
(Poema gentilmente cedido pelo meu amigo Osvaldo)
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